segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Mas nenhum tempo mata a dor

O tempo passa. O tempo passa e a dor passa. Não passa mas espalha-se. Espalha-se por todo o corpo, espalha-se por todos os dias. A dor espalha-se. A dor não morre mas espalha-se. E o que está mais espalhado é menos intenso. Vale o mesmo mas é menos intenso. Como ter várias pequenas feridas suportáveis em vez de ter uma grande ferida insuportável. É isso que o tempo faz: espalha a dor. Ensina-nos a suportar a dor. A espalmá-la, a dividi-la. Mas nenhum tempo mata a dor.

Pedro Chagas Freitas, in Sexus Veritas

domingo, 14 de fevereiro de 2016

As Cartas sem Retorno e o Juízo Final

Quase tudo se passa em silêncio. Ainda hoje, quis levantar-se da mesa e em lugar de levantar-se aumentou-se no assento. E o desgosto, o desprezo, as mãos ora cruzadas ora sustendo o peso da cabeça. O que dói mais que um infeliz cruzar de dois destinos?
- Agora é que arranjaste a bonita. - pensou.
Se não a conhecesse diria que uma farda, uma espingarda e munições e estava pronta para a guerra. Pena tenho daquele que a encontrar e, ele que tenha, primeiro o impulso e automaticamente a seguir a perspicácia exigida para que quando o olhar dela o incidir ele se possa pôr a milhas dali.
Excluídas as hipóteses, era a última faceta dela que me faltava assistir. Não, não estávamos a jogar ao "Quem é quem?" e muito menos ao faz de conta. Garanto ter sido um caso sério... Bicudo até. De certo tinha acabado de dar férias a metade dos meus neurónios quando a abandonei. Fez dois anos na passada semana, setecentos e trinta dias sem que uma pequeníssima palavra lhe fosse dirigida. E aquela química invejável que possuíamos? Setecentos e trinta dias...
Contraído em divagações não participou do paulatino erigir de Felícia, que acabara de acercar-se da mesa corrida das bebidas e de um trago fazer escorrer até às entranhas um whisky duplo.
- Mecanismos de tortura que nos levam a ponteiros trabalhados em mostradores de porcelana. Tudo aparentemente estudado ao pormenor e, ainda assim, tão fraco, tão efémero. - dizia Felícia em monólogo à medida que passadas largas se estendiam pelo corredor central., - E não foram setecentos e trinta dias meu caro. Foi o teu retrato suspenso na parede do hall de entrada. Foram as poucas tonalidades de voz idênticas à tua que de quando em vez me via obrigada a escutar. Foi o procurar-te em todos os homens e nenhum deles seres tu. Foi o teu toque suave que todas as noites se evapora em mim. Foi a máquina de escrever que propositadamente encondeste na gaveta dos lençóis. Foram as setecentas e trinta cartas sem retorno.

15/02/16. C.V.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Agora é que lhe lembram as cacetadas...

Olha, não sei por onde começar. Muito menos sei se conheço o número mínimo de palavras para escrever alguma coisa que jeito tenha. Que se danem as frases bem feitinhas, essas pertencem-te por mérito. Lá o alemão, como é que o homem se chama? Ah sim, o tal Beethoven: "o prodigioso pianista". Ele um valente surdo e o pai um alcoólico potente, mas um...

(- Incontestável e exímio compositor!)- ecoa indignada.

indivíduo que rabisca umas notas de música às direitas. E eu um valente desgraçado e filho de um traste que nunca pus a vista em cima escrevei uma treta qualquer. Espera! Ofereceste-me p'lo natal aquele livro da conjugação dos verbos e trouxe-o para to deixar, anda lá ao pó e a capa já tem bolor. Ora veijamos...

Eu escreverei
Tu escreverás
Ele escreverá
Nós escreveremos
Vós escrevereis
Eles escreverão

Ah então é isso?! Desculpa, mais vale ficar quieto. Deves subir aos arames com estas cacetadas.

(- Agoram é que lhe lembram as cacetadas. Dava-lhas eu se o destino não se tivesse tornado um impostor.)

(...)


11/02/16. C.V.