segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar? (excerto), de António Lobo Antunes

nunca vi uma pessoa ocupar tão pouco espaço como ele nessa tarde à medida que fragmentos indecisos principiavam a unir-se em mim, membranas transparentes e essa espécie de lágrimas que nos acompanham toda a vida, algumas vezes nas pálpebras mas a maior parte do tempo ocultas de nós, numa das pregas de desconsolo de que somos feitos, se conseguisse contar-vos, e não consigo, o que nos rói sem sabermos, o que custa sem darmos fé omitindo os segredos estrangulados e as misérias conscientes, tanta boneca falecida, tantos olhos só nossos que nos censuram
- Porquê?
a minha mãe
- O que se passa contigo?
mentir
- Não se passa nada garanto
quando se passa tudo mãe, não insista nem me dê atenção, casei com o meu marido não foi e anulei as nódoas sem anular os cavalos, aí estão eles a atazanarem-me, não esclareço isto bem porque as palavras avançam depressa e o papel não chega, eis o António Lobo Antunes a saltar frases não logrando acompanhar-me e a afogar num tanque os gatinhos para se desembaraçar de mim, casei com o meu marido e depois do veterinário e do cão cada qual na sua ponta de sofá que ia alargando, alargando, nem aos berros nos ouvíamos, nem juntos nos enxergávamos, nem perto se conhecia o outro
(...)
vi-o entrar no carro, vi-o a ver-me demorando a entrar, esperei um gesto e gesto algum, um braço que acenasse, a bandeirola de um sorriso a desistir, o
- Gosto de ti
apagou-se numa espiralzinha, o que eu não dava para o escutar, se o meu pai gostasse de mim pode ser que eu mais ou menos no apartamento cheio de pregos nas paredes em lugar de quadros e um retrato nosso na quinta
(...)

terça-feira, 15 de julho de 2014

Instantes perpétuos

Trago o gesto de quem não quer subsistir
como um barco que se afasta do seu cais,
por permanecer enfim alheio aos demais,
travando-se com a mágoa do porvir.

De índole incoerente e fatídica,
passeio pelas horas ásperas,
todas tão cheias de recordações nefastas...

terça-feira, 13 de maio de 2014

As Sete Penas do Amor Errante, Manuel Alegre

Eu não sei se os teus olhos se gaivotas
mas era o mar e a Índia já perdida
as ilhas e o azul o longe e as rotas
minha vida em pedaços repartida.

Eu não sei se o teu rosto se um navio
mas era o Tejo a mágoa a brisa o cais
meu amor a partir-se à beira-rio
em uma nau chamada nunca mais.

Eu não sei se os teus dedos se as amarras
mas era algo que partia e que
ficava. Ou talvez cordas de guitarras
ó meu amor de embarque desembarque.

Eu não sei se era amor ou se loucura
mas era ainda o verbo descobrir
ó meu amor de risco e de aventura
não sei se Ceuta ou Alcácer Quibir.

Eu não sei se era perto se distante
mas era ainda o mar desconhecido
ou Camões a penar por Violante
as sete penas do amor proibido.

Eu não sei se ventura se castigo
mas era ainda o sangue e a memória
talvez o último cantar de amigo
amor de perdição amor de glória.

Eu não sei se teu corpo se meu chão
mas era ainda a terra e o mar. E em cada
teu gesto a grande peregrinação
das sete penas do amor lusíada.


Manuel Alegre, Atlântico

sábado, 5 de abril de 2014

Seja o futuro emenda do passado, e o que há-de ser, satisfação do que foi. (Padre António Vieira)

Pergunta-me insistentemente:
- Como é que tudo aconteceu?
- As coisas acontecem, sabe? É como num livro. Neste caso, o livro da vida. Inicia-se com letra maiúscula- ou pelo menos deveria ser de tal modo-, as palavras fluem, vigorosas e coerentes. Estas, criam em quem as lê toda uma sensibilidade para com a narrativa. Por vezes, sinto mais do que o que sei exprimir e isso nota-se aquando da transposição para o papel.
- E o que tem isso a ver para o caso?
- Tem tudo. E ao mesmo tempo não tem nada.
Não sei se ela iria conseguir perceber, mas também sempre fui muito vaga nas nossas conversas. Creio que, de facto, nem eu conseguiria perceber. Por isso esperava que ela caminhasse de encontro ao busílis da questão. Olhou-me com expressão aborrecida e disse:
- Lá estás tu com as tuas contradições... Já reparaste que desde que te sentaste nessa cadeira não disseste nada de concreto? Assim não te consigo ajudar, não consigo chegar até ti.
- Nada mais tenho a proferir. São estas as palavras que tenho para lhe oferecer.
- Ah, estou a ver que és pessoa de uma extrema generosidade!
Surge então aquele sorriso a tender para a ironia, desvanecendo-se por entre a corrente de ar que se fazia sentir naquele espaço diminuto. Os seus braços cruzaram. Fez-se sentir o silêncio que previa algumas palavras minhas, contudo, já tinha anunciado o desfecho do discurso.
Ciente da agitação mental que me estava a provocar aquela conversa tão cuidadosamente conduzida, estudada até ao mais ínfimo pormenor, ela desfez o cruzar dos braços e debruçando-se sobre o teclado daquele pachorrento computador redigiu qualquer coisa que não vi nem nunca verei.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

João Tordo apresenta o seu último romance, com um remate em Si bemol (Por Sandra Gonçalves)


  • João Tordo lançou na quinta-feira, na Fundação José Saramago, o seu último romance, «Biografia involuntária dos amantes», que assinala a sua estreia na editora Alfaguara. A apresentação esteve a cargo do escritor José Eduardo Agualusa. Perante um anfiteatro todo ele afecto, com familiares, amigos e fãs, contou que este livro, o sétimo já editado, é «uma tentativa de compor identidades; tem um lado orgânico».
«Biografia involuntária dos amantes» passa-se numa estrada adormecida da Galiza. Dois homens atropelam um javali. A visão do animal morto na estrada levará um deles – Saldaña Paris, um jovem poeta mexicano – a puxar o primeiro fio do novelo da sua vida. Instigado pelas confissões desconjuntadas do poeta, o seu companheiro de viagem – um professor universitário divorciado – irá tentar descobrir o que está por trás da persistente melancolia de Saldaña Paris.
À plateia, João Tordo contou que alterou a sua rotina ao compor este romance. O livro «foi mudando de dia para dia, não o planeei e descobri que sou muito mais livre quando as personagens falam por si, e sem haver uma mecânica no enredo».
Esta é uma obra que resulta de partilhas e cumplicidades; a história do javali foi-lhe contada por um amigo, o poeta mexicano conheceu-o no Canadá em 2012, o professor universitário é inspirado no escritor galego Carlos Quiroga, e Teresa, personagem principal do livro, é inspirada na sua mãe.

«É interessante escrever assim, leva-nos a um confronto com a nossa própria vida», enfatizou, para, de seguida, acrescentar que este romance «joga com reconhecimentos»; descobriu, ao compô-lo, que sozinho não consegue fazer nada.
No dia em que o Benfica preparava-se para defrontar o AZ Alkmaar na Holanda (João Tordo é um ferrenho benfiquista), temia-se que a sala estivesse vazia. Pelo contrário. Mas em várias ocasiões brincou-se sobre isso.
Voltando ao livro, o escritor, que venceu o Prémio Literário José Saramago com «As três vidas» (2008) – pelo que o facto de a apresentação ter ocorrido na Fundação Saramago ter conferido um relevo especial ao evento –, assumiu que inconscientemente acaba por «fazer a migração de personagens de livro para livro», mas que neste «Biografia involuntária dos amantes» conseguiu «fechar personagens e ciclos».
Porém, se ao longo de toda a obra deixou que a história fluísse alheado da sua vontade, sem um motor, o final reescreveu-o muitas vezes. Não queria que tivesse um desfecho «grave nem muito agudo», assumiu. «É um final em Si bemol, como uma sinfonia de Beethoven.»
Confessou ainda que tem um alter-ego que transporta para o seu trabalho e que é através dele que se diverte a fazer jogos. «Gosto de divertir-me no trabalho», disse a rir.
João Tordo confidenciou que este romance «foi muito pacificador, veio de um lado muito sincero». Quando o terminou, revelou, sentiu-se perfeito, por que o ajudou a aceitar todas as suas imperfeições. «Abdiquei do controlo. Soube perder. E isto é muito bom, muito pacificador.»
No final da apresentação, a plateia foi surpreendida com uma intervenção imprevista; um primor. Pilar del Río juntou-se ao evento para dar os parabéns a João Tordo, desejou a todos os presentes «uma boa travessia» e fez questão de frisar que aquela casa, a Fundação José Saramago, «estará sempre aberta a todos».

terça-feira, 25 de março de 2014

José Saramago- Excerto da obra "Claraboia"

Algumas vezes, desde que começara a viver livremente, Abel perguntara a si mesmo: "Para quê?" A resposta era sempre igual e também a mais cómoda: "Para nada." E se o pensamento insistia: "Não é nada. Assim não vale a pena", acrescentava: "Deixo-me ir. Isto há de ir dar a algum lado."
Bem via que "isto", a sua vida, não ia dar a parte alguma, que procedia como os avarentos que amontoam o ouro só para terem o prazer de o contemplar. No seu caso não se tratava de ouro, mas de experiência, único proveito da sua vida. Contudo, a experiências, não sendo aplicada, é como o ouro imobilizado: não produz, não rende, é inútil. E de nada vale a um homem acumular experiência como se colecionasse selos.
As suas poucas e mal assimiladas leituras de filosofia, ao acaso dos compêndios escolares e das brochuras desenterradas da poeira dos alfarrabistas da Calçada do Combro, permitiam-lhe pensar e dizer que desejava conhecer o sentido oculto da vida. Mas nos dias de desencantamento da sua existência, já lhe acontecera reconhecer que semelhante desejo era uma utopia e que as experiências multiplicadas apenas serviam para tornar mais denso o véu que pretendia afastar. A falta de sentido concreto da sua vida forçava-o, porém, a firmar-se naquele desejo que já deixara de o ser, para se transformar numa razão de viver tão boa ou tão má como qualquer outra.

domingo, 23 de março de 2014

Posso ficar aqui,
se entenderes que deva.
Posso ficar aqui,
com todas as portas e janelas cerradas
que me engaiolam.
Sucumbir ao desespero
de todos estes olhares tristes,
tão tristes, tão apagados,
que me falam sem que os oiça.
Chegam de expressão lastimável
e caminham lentamente para o abismo,
sem a consciência de que tudo isto
e o mais que possam pensar em paralelo
se reduz à ilusão que têm vindo a construir.
Entre esperas incontornáveis,
conversas que apaziguam o medo,
vozes audíveis mas que não têm a quem pertencer
se as tento encontrar,
a porta entre a suposição e a verdade
admite passagem aos moribundos.
O que se passa para além desta porta
é uma incógnita,
apenas vejo que saem mais depressa do que entram...

Por vezes dou por mim a pensar
se algum dia,
algum deles,
sairá, de facto...

Sinto uma aflição aterradora por esta gente toda,
e talvez por mim,
que aqui estou também.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Corrompo amiúde
esta tarefa prosaica
que é a vida
criando protuberâncias
na claridade do sonho,
porque sonhar
é permitir à alma que invada a mente,
é viajar além do real,
é a indigência de conhecimento,
que faz do Homem
um ser imperecível
na sua plenitude.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Inês Pedrosa- O êxodo

Partir depressa. A frase que mais ouço aos adolescentes próximos. Repito-lhes que não é assim, que a felicidade é possível nesta terra. As minhas palavras estão todas erradas: a felicidade não lhes interessa, a repetição não os demove, os nãos dos mais velhos cheiram ao ranço do paternalismo. Move-os o sonho de iluminar as coisas. E todos os dias são fustigados por exortações à mediocridade bem organizada.
Estive com alunos de uma escola secundária de Vila do Conde e pedi-lhes que não desistissem da língua portuguesa. Atingiram o décimo ano de escolaridade e não lhes ocorre um só escritor português de que gostem. Ou de que, pelo menos, não gostem. Desconhecem.
«Não gosto d'Os Maias!» aventurou-se um, lá de trás, protegido pelas cabeças prontamente concordantes dos outros. Disse-lhes que saltassem as páginas de introdução e mergulhassem na história. Prometi-lhes que, se o fizessem, iriam gostar. Olharam-me com pena. O mesmo olhar que me devolvem os adolescentes mais próximos, aquele olhar que diz: «és tão ingénua, tu; habituaste-te, coitada; acreditas no futuro deste país, na salvação através da palavra e no amor eterno. O destino te proteja, que nós não vamos ficar aqui, à espera de contar côdeas quando formos velhinhos, mancando a caminho das repartições de Finanças com papéis na mão a perguntar, se faz favor, se não houve um enganozinho».
(...)

Disponível em http://sol.sapo.pt/inicio/Opiniao/interior.aspx?content_id=100604&opiniao=Opini%E3o

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

27-02-14

Dois corpos que se unem
na edificação de um amor absoluto,
fogo que arde eternamente,
vida que te estendes,
alma dilacerada
que dei de mim
só de mim e mais nada!
para que pudesses sentir o sal dos mares
e permanecêssemos imunes a esta vela apagada.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

José Saramago- Sobre Fernando Pessoa

Era um homem que sabia idiomas e fazia versos. Ganhou o pão e o vinho pondo palavras no lugar de palavras, fez versos como os versos se fazem, como se fosse a primeira vez. Começou por se chamar Fernando, pessoa como toda a gente. Um dia lembrou-se de anunciar o aparecimento iminente de um super-Camões, um camões muito maior que o antigo, mas, sendo uma pessoa conhecidamente discreta, que soía andar pelos Douradores de gabardina clara, gravata de lacinho e chapéu sem plumas, não disse que o super-Camões era ele próprio. Afinal, um super-Camões não vai além de ser um camões maior, e ele estava de reserva para ser Fernando Pessoas, fenómeno nunca visto antes em Portugal. Naturalmente, a sua vida era feita de dias, e dos dias sabemos nós que são iguais mas não se repetem, por isso não surpreende que em um desses, ao passar Fernando diante de um espelho, nele tivesse percebido, de relance, outra pessoa. Pensou que havia sido mais uma ilusão de óptica, das que sempre estão a acontecer sem que lhes prestemos atenção, ou que o último copo de aguardente lhe assentara mal no fígado e na cabeça, mas, à cautela, deu um passo atrás para confirmar se, como é voz corrente, os espelhos não se enganam quando mostram. Pelo menos este tinha-se enganado: havia um homem a olhar de dentro do espelho, e esse homem não era Fernando Pessoa. Era até um pouco mais baixo, tinha a cara a puxar para o moreno, toda ela rapada. Com um movimento inconsciente, Fernando levou a mão ao lábio superior, depois respirou fundo com infantil alívio, o bigode estava lá. Muita coisa se pode esperar de figuras que apareçam nos espelhos, menos que falem. E porque estes, Fernando e a imagem que não era a sua, não iriam ficar ali eternamente a olhar-se, Fernando Pessoa disse: “Chamo-me Ricardo Reis”. O outro sorriu, assentiu com a cabeça e desapareceu. Durante um momento, o espelho ficou vazio, nu, mas logo a seguir outra imagem surgiu, a de um homem magro, pálido, com aspecto de quem não vai ter muita vida para viver. A Fernando pareceu-lhe que este deveria ter sido o primeiro, porém não fez qualquer comentário, só disse: “Chamo-me Alberto Caeiro”. O outro não sorriu, acenou apenas, frouxamente, concordando, e foi-se embora. Fernando Pessoa deixou-se ficar à espera, sempre tinha ouvido dizer que não há duas sem três. A terceira figura tardou uns segundos, era um homem daqueles que exibem saúde para dar e vender, com o ar inconfundível de engenheiro diplomado em Inglaterra. Fernando disse: “Chamo-me Álvaro de Campos”, mas desta vez não esperou que a imagem desaparecesse do espelho, afastou-se ele, provavelmente tinha-se cansado de ter sido tantos em tão pouco tempo. Nessa noite, madrugada alta, Fernando Pessoa acordou a pensar se o tal Álvaro de Campos teria ficado no espelho. Levantou-se, e o que estava lá era a sua própria cara. Disse então: “Chamo-me Bernardo Soares”, e voltou para a cama. Foi depois destes nomes e alguns mais que Fernando achou que era hora de ser também ele ridículo e escreveu as cartas de amor mais ridículas do mundo. Quando já ia muito adiantado nos trabalhos de tradução e poesia, morreu. Os amigos diziam-lhe que tinha um grande futuro na sua frente, mas ele não deve ter acreditado, tanto assim que decidiu morrer injustamente na flor da idade, aos 47 anos, imagine-se. Um momento antes de acabar pediu que lhe dessem os óculos: “Dá-me os óculos” foram as suas últimas e formais palavras. Até hoje nunca ninguém se interessou por saber para que os queria ele, assim se vêm ignorando ou desprezando as últimas vontades dos moribundos, mas parece bastante plausível que a sua intenção fosse olhar-se num espelho para saber quem finalmente lá estava. Não lhe deu tempo a parca. Aliás, nem espelho havia no quarto. Este Fernando Pessoa nunca chegou a ter verdadeiramente a certeza de quem era, mas por causa dessa dúvida é que nós vamos conseguindo saber um pouco mais quem somos.

Disponível em http://caderno.josesaramago.org/2008/10/?page=4

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Almeida Garrett

O Álbum 

Minha Júlia, um conselho de amigo;
Deixa em branco este livro gentil:
Uma só das memórias da vida
Vale a pena guardar, entre mil.

E essa n’alma em silêncio gravada
Pelas mãos do mistério há-de ser;
Que não tem língua humana palavras,
Não tem letra que a possa escrever.

Por mais belo e variado que seja
De uma vida o tecido matiz ,
Um só fio da tela bordada,
Um só fio há-de ser o feliz.

Tudo o mais é ilusão, é mentira,
Brilho falso que um tempo seduz,
Que se apaga, que morre, que é nada
Quando o sol verdadeiro reluz.

De que serve guardar monumentos
Dos enganos que a esp’rança forjou?
Vãos reflexos de um sol que tardava
Ou vãs sombras de um sol que passou!

Crê-me, Júlia: mil vezes na vida
Eu coa minha ventura sonhei;
E uma só, dentre tantas, o juro,
Uma só com verdade a encontrei.

Essa entrou-me pela alma tão firme,
Tão segura por dentro a fechou,
Que o passado fugiu da memória,
Do porvir nem desejo ficou.

Toma pois, Júlia bela, o conselho:
Deixa em branco este livro gentil,
Que as memórias da vida são nada,
E uma só se conserva entre mil.


Almeida Garrett, in 'Folhas Caídas'


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Novo livro de João Tordo é editado em Abril pela Alfaguara


O novo romance de João Tordo, "Biografia involuntária dos amantes", será editado em Abril pela Alfaguara, editora que passará a publicar a obra do escritor, foi hoje divulgado em comunicado.

"João Tordo, vencedor do Prémio José Saramago e um dos mais relevantes nomes da literatura portuguesa contemporânea, junta-se a um jovem mas cuidado catálogo de ficção literária, em que se destacam autores portugueses como Afonso Cruz, Ricardo Adolfo e Valter Hugo Mãe", afirma a Alfaguara em comunicado enviado à Lusa.
"Biografia involuntária dos amantes" é o sétimo romance de João Tordo que, em finais do mês passado ,disse à agência Lusa ser este o seu "livro mais conseguido".

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Fernando Namora

A Mais Bela Noite do Mundo

Hoje, 
será o fim! 

Hoje 
nem este falso silêncio 
dos meus gestos malogrados 
debruçando-se 
sobre os meus ombros nus 
e esmagados! 

Nem o luar, pano baço de cenário velho, 
escutando 
a minha prisão de viver 
a lição que me ditavam: 
- Menino! acende uma vela na tua vida, 
que o sol, a luz e o ar 
são perfumes de pecado. 
Tem braços longos e tentadores – o dia! 

- Menino! recolhe-te na sombra do meu regaço 
que teus pés 
são feitos de barro e cansaço! 

(Era esta a voz do papão 
pintado de belo 
na máscara de papelão). 

Eram inúteis e magoadas as noites da minha rua... 
Noites de lua 
que lembravam as grilhetas 
da minha vida parada. 

- Amanhã, 
terás os mestres, as aulas, os amigos e os livros 
e o espectáculo da morgue 
morando durante dias 
nos teus sentidos gorados. 

Amanhã, 
será o ultrapassar outra curva 
no teu caminho destinado. 

(Era esta a voz do papão 
que acendia a vela, tinha regaço de sombra 
e velava 
as noites da minha rua e a minha vida 
e pintava-se de belo 
na máscara de papelão). 

Hoje, 
será o fim! 

Hoje, 
nem a sombra do que há-de vir, 
nem os mestres, nem os amigos, nem os livros, 
nem a fragilidade dos meus pés 
feitos de barro e cansaço! 
Todas as minhas revoltas domadas, 
todos os meus gestos em meio 
e as minhas palavras sufocadas 
terão a sua hora de viver e amar! 

Hoje, 
nem o cadáver a sorrir na morgue, 
nem as mãos que ficaram angustiosas, 
arrepiadas 
no seu medo de findar! 

Hoje, 
será a mais bela noite do mundo! 

Fernando Namora, in 'Mar de Sargaços'

domingo, 26 de janeiro de 2014

Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, 
e o que nos ficou não chega 
para afastar o frio de quatro paredes. 
Gastámos tudo menos o silêncio. 
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, 
gastámos as mãos à força de as apertarmos, 
gastámos o relógio e as pedras das esquinas 
em esperas inúteis. 

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada. 
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro; 
era como se todas as coisas fossem minhas: 
quanto mais te dava mais tinha para te dar. 

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes. 
E eu acreditava. 
Acreditava, 
porque ao teu lado 
todas as coisas eram possíveis. 

Mas isso era no tempo dos segredos, 
era no tempo em que o teu corpo era um aquário, 
era no tempo em que os meus olhos 
eram realmente peixes verdes. 
Hoje são apenas os meus olhos. 
É pouco, mas é verdade, 
uns olhos como todos os outros. 

Já gastámos as palavras. 
Quando agora digo: meu amor, 
já se não passa absolutamente nada. 
E no entanto, antes das palavras gastas, 
tenho a certeza 
que todas as coisas estremeciam 
só de murmurar o teu nome 
no silêncio do meu coração. 

Não temos já nada para dar. 
Dentro de ti 
não há nada que me peça água. 
O passado é inútil como um trapo. 
E já te disse: as palavras estão gastas. 

Adeus. 

Eugénio de Andrade, em Poesia e Prosa

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Partilhámos a mesma casa durante meia década, lá na aldeia.
Felícia vivia no rés-do-chão. Separavam-nos aqueles intermináveis nove degraus, que tinha tanta dificuldade em subir. Cada erguer de perna uma dor que nunca descobri, uma dor que nunca me contou. Pudesse eu ter transportado essa dor debaixo do braço na altura e talvez ainda Felícia cá permanecesse.
O seu percurso de vida sempre me maravilhou. Rotineiramente nos sentávamos nas escadas que davam acesso ao terraço onde Felícia estendia a roupa. Contava-me as histórias da sua juventude, passada em Lisboa, de um amor que não fora correspondido e das peripécias ocorridas na maternidade Alfredo da Costa, local onde trabalhou. Falava-me com olhos doces, uns olhos de um castanho cor-de-avelã que nunca mais esquecerei. Cada palavra sua respirava saudade e os seus lábios tremiam até ao âmago sofredor.
Que saudades eu guardo dessas histórias deliciosas, como se de um chocolate se tratasse... Daqueles que se nos derretem na boca, sabe?

domingo, 5 de janeiro de 2014

1942-2014


“Em qualquer local aonde me desloco, as pessoas simples com quem contacto, como os motoristas, ao falarem de Portugal, respondem: ‘Ah! Amália; Ah! Eusébio; Ah! Rosa Mota!’ E, por isso, Eusébio é, na verdade, uma glória do futebol nacional”, Mário Soares in O Jogo, 1992

sábado, 4 de janeiro de 2014


Hoje ficas na companhia de uma casa vazia de ruídos palavrosos de gente, com a escrita de António Lobo Antunes e vais cultivando as migalhas de silêncio entre os compassos de espera da nobre rádio Antena 2.
Estou convicta de que ficas bem entregue.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Escrito a 5 de Março de 2013

A parte que em mim falha
E a ânsia que por aí se espalha
São análogo de um antro sem luz,
Semblante do invisível que me conduz.

O sonho de uma humanidade perdida,
Contida numa margem esquecida,
Alheia a uma cultura universal
Que se estende pelos olhos da vida.

Os mundos que por aí se encontram
E as histórias que os livros não contam
São fruto de uma alegria outrora crucificada,
Qual alegoria tão provida de nada.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Há Palavras que Nos Beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

A procura de uma identidade

Existe um lugar que jamais esquecerei. É exatamente onde me encontro hoje.
Subitamente consciencializo-me de que foi realmente aqui, rodeada do inimaginável, que alcancei o sentimento de felicidade no seu estado mais casto.
A única dor da qual me recordo foi a de um joelho esfolado, fruto das brincadeiras indissociáveis da idade na época. O local da queda ainda persiste no meu consciente, porém deixou de ter essa função: a de alguém tropeçar nele. Na verdade, já nada tem nenhuma função no interior destas grades, com exceção da velha nespereira que continua a sua produção anual.
Esta desfuncionalidade mantém-se e hoje tece um quotidiano insípido e sombrio.
Há dias em que olho para o meu semblante refletido numa porta de uma casa, numa janela que se esqueceram de abrir, e pergunto-me: Serei eu funcional perante o mundo? Ou será que o conceito utópico de perfeição me não deixará alcançar a paz de espírito que insistentemente procuro?
Defronto-me com alguém que não conheço, e surge a dúvida se alguma vez conhecerei.