Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade, em Poesia e Prosa
domingo, 26 de janeiro de 2014
sexta-feira, 17 de janeiro de 2014
Partilhámos a mesma casa durante meia década, lá na aldeia.
Felícia vivia no rés-do-chão. Separavam-nos aqueles intermináveis nove degraus, que tinha tanta dificuldade em subir. Cada erguer de perna uma dor que nunca descobri, uma dor que nunca me contou. Pudesse eu ter transportado essa dor debaixo do braço na altura e talvez ainda Felícia cá permanecesse.
O seu percurso de vida sempre me maravilhou. Rotineiramente nos sentávamos nas escadas que davam acesso ao terraço onde Felícia estendia a roupa. Contava-me as histórias da sua juventude, passada em Lisboa, de um amor que não fora correspondido e das peripécias ocorridas na maternidade Alfredo da Costa, local onde trabalhou. Falava-me com olhos doces, uns olhos de um castanho cor-de-avelã que nunca mais esquecerei. Cada palavra sua respirava saudade e os seus lábios tremiam até ao âmago sofredor.
Que saudades eu guardo dessas histórias deliciosas, como se de um chocolate se tratasse... Daqueles que se nos derretem na boca, sabe?
Felícia vivia no rés-do-chão. Separavam-nos aqueles intermináveis nove degraus, que tinha tanta dificuldade em subir. Cada erguer de perna uma dor que nunca descobri, uma dor que nunca me contou. Pudesse eu ter transportado essa dor debaixo do braço na altura e talvez ainda Felícia cá permanecesse.
O seu percurso de vida sempre me maravilhou. Rotineiramente nos sentávamos nas escadas que davam acesso ao terraço onde Felícia estendia a roupa. Contava-me as histórias da sua juventude, passada em Lisboa, de um amor que não fora correspondido e das peripécias ocorridas na maternidade Alfredo da Costa, local onde trabalhou. Falava-me com olhos doces, uns olhos de um castanho cor-de-avelã que nunca mais esquecerei. Cada palavra sua respirava saudade e os seus lábios tremiam até ao âmago sofredor.
Que saudades eu guardo dessas histórias deliciosas, como se de um chocolate se tratasse... Daqueles que se nos derretem na boca, sabe?
domingo, 5 de janeiro de 2014
1942-2014
“Em qualquer local aonde me desloco, as pessoas simples com quem contacto, como os motoristas, ao falarem de Portugal, respondem: ‘Ah! Amália; Ah! Eusébio; Ah! Rosa Mota!’ E, por isso, Eusébio é, na verdade, uma glória do futebol nacional”, Mário Soares in O Jogo, 1992
sábado, 4 de janeiro de 2014
sexta-feira, 3 de janeiro de 2014
Escrito a 5 de Março de 2013
A parte que em mim falha
E a ânsia que por aí se espalha
São análogo de um antro sem luz,
Semblante do invisível que me conduz.
O sonho de uma humanidade perdida,
Contida numa margem esquecida,
Alheia a uma cultura universal
Que se estende pelos olhos da vida.
Os mundos que por aí se encontram
E as histórias que os livros não contam
São fruto de uma alegria outrora crucificada,
Qual alegoria tão provida de nada.
E a ânsia que por aí se espalha
São análogo de um antro sem luz,
Semblante do invisível que me conduz.
O sonho de uma humanidade perdida,
Contida numa margem esquecida,
Alheia a uma cultura universal
Que se estende pelos olhos da vida.
Os mundos que por aí se encontram
E as histórias que os livros não contam
São fruto de uma alegria outrora crucificada,
Qual alegoria tão provida de nada.
quinta-feira, 2 de janeiro de 2014
Há Palavras que Nos Beijam
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'
quarta-feira, 1 de janeiro de 2014
A procura de uma identidade
Existe um lugar que jamais esquecerei. É exatamente onde me encontro hoje.
Subitamente consciencializo-me de que foi realmente aqui, rodeada do inimaginável, que alcancei o sentimento de felicidade no seu estado mais casto.
A única dor da qual me recordo foi a de um joelho esfolado, fruto das brincadeiras indissociáveis da idade na época. O local da queda ainda persiste no meu consciente, porém deixou de ter essa função: a de alguém tropeçar nele. Na verdade, já nada tem nenhuma função no interior destas grades, com exceção da velha nespereira que continua a sua produção anual.
Esta desfuncionalidade mantém-se e hoje tece um quotidiano insípido e sombrio.
Há dias em que olho para o meu semblante refletido numa porta de uma casa, numa janela que se esqueceram de abrir, e pergunto-me: Serei eu funcional perante o mundo? Ou será que o conceito utópico de perfeição me não deixará alcançar a paz de espírito que insistentemente procuro?
Defronto-me com alguém que não conheço, e surge a dúvida se alguma vez conhecerei.
Subitamente consciencializo-me de que foi realmente aqui, rodeada do inimaginável, que alcancei o sentimento de felicidade no seu estado mais casto.
A única dor da qual me recordo foi a de um joelho esfolado, fruto das brincadeiras indissociáveis da idade na época. O local da queda ainda persiste no meu consciente, porém deixou de ter essa função: a de alguém tropeçar nele. Na verdade, já nada tem nenhuma função no interior destas grades, com exceção da velha nespereira que continua a sua produção anual.
Esta desfuncionalidade mantém-se e hoje tece um quotidiano insípido e sombrio.
Há dias em que olho para o meu semblante refletido numa porta de uma casa, numa janela que se esqueceram de abrir, e pergunto-me: Serei eu funcional perante o mundo? Ou será que o conceito utópico de perfeição me não deixará alcançar a paz de espírito que insistentemente procuro?
Defronto-me com alguém que não conheço, e surge a dúvida se alguma vez conhecerei.
Assinar:
Postagens (Atom)