quinta-feira, 30 de junho de 2016

As mulheres têm fios desligados. Por António Lobo Antunes

Há uns tempos a Joana,
- Pai, acabei um namoro à homem.
Perguntei como era acabar um namoro à homem e vai a miúda
-Disse-lhe o problema não está em ti, está em mim.
O que me fez pensar como as mulheres são corajosas e os homens cobardes. Em primeiro lugar só terminam uma relação quando têm outra. Em segundo lugar são incapazes de
- Já não gosto de ti
de
- Não quero mais
chegam com discursos vagos, circulares
- Preciso de tempo para pensar
- Não é que não te amo, amo-te, mas tenho de ficar sozinho umas semanas
ou declarações do género de
- Tu mereces melhor do que eu
- Estive a reflectir e acho que não te faço feliz
- Necessito de um mês de solidão para sentir a tua falta
e aos amigos
- Dá-me os parabéns que lá me consegui livrar da chata
- Custou-me mas foi
- Amandei-lhe daquelas lérias do costume e a gaja engoliu
- Chora um dia ou dois e passa-lhe
e pergunto-me se os homens gostam verdadeiramente das mulheres. Em geral querem uma empregada que lhes resolva o quotidiano e com quem durmam, uma companhia porque têm pavor da solidão, alguém que os ampare nas diarreias, nos colarinhos das camisas e nas gripes, tome conta dos filhos e não os aborreça. Não se apaixonam: entusiasmam-se e nem chegam a conhecer com quem estão. Ignoram o que ela sonha, instalam-se no sofá do dia a dia, incapazes de introduzir o inesperado na rotina, só são ternos quando querem fazer amor e acabado o amor arranjam um pretexto para se levantar
(chichi, sede, fome, a janela de que se esqueceram de baixar o estore)
ou fingem que dormem porque não há paciência para abraços e festinhas,
pá, e a respiração dela faz-me comichão nas costas, a mania de ficarem agarradas à gente, no ronhónhó, a mania das ternuras, dos beijos, quem é que atura aquilo? Lembro-me de um sujeito que explicava
- O maior prazer que me dá ter relações com a minha mulher é saber que durante uma semana estou safo
e depois pegam-nos na mão no cinema, encostam-se, colam-se, contam histórias sem interesse nenhum que nunca mais terminam, querem variar de restaurante, querem namoro, diminutivos, palermices e nós ali a aturá-las. O Dinis Machado contava-me de um conhecedor que lhe aclarava as ideias
- As mulheres têm fios desligados
e um outro elucidou-me que eram como os telefones: avariam-se sem que se entenda a razão, emudecem, não funcionam e o remédio é bater com o aparelho na mesa para que comecem a trabalhar outra vez. Meu Deus, que pena me dão as mulheres. Se informam
- Já não gosto de ti
se informam
-Não quero mais
aí estão eles a alterarem a agressividade com a súplica, ora violentos ora infantis, a fazerem esperas, a chorarem nos SMS a levantarem a mãozinha e, no instante seguinte, a ameaçarem matar-se, a perseguirem, a insistirem, a fazerem figuras tristes, a escreverem cartas lamentosas e ameaçadoras, a entrarem pelo emprego dentro, a pegarem no braço, a sacudirem, a mandarem flores eles que nunca mandavam flores, a colocarem-se de plantão à porta dado que aquela puta há-de ter outro e vai pagá-las, dispostos a partes-gagas, cenas ridículas, gritos. A miséria da maior parte dos casais, elas a sonharem com o Zorro, com o Che Guevara ou eles a sonharem com o decote da vizinha de baixo, de maneira que ao irem para a cama são quatro: os dois que lá se deitam e os outros dois com quem sonham. Sinceramente as minhas filhas preocupam-me: receio que lhe caia na sorte um caramelo que passe à frente delas nas portas, não lhes abra o carro, desapareça logo a seguir por chichi-sede-fome-persiana-mal-descida-e-os-ladrões-percebes, não se levante quando entram, comece a comer primeiro e um belo dia
(para citar noventa por cento dos escritores portugueses)
- O problema não está em ti, está em mim
a mexerem na faca à mesa ou a atormentarem a argola do guardanapo, cobardes como sempre. Não tenho nada contra os homens: até gosto de alguns. Dos meus amigos. De Shubert. De Ovídio. De Horácio, de Virgílio. De Velásquez. De Rui Costa. De Einzenberger. Razoável, a minha colecção. Não tenho nada contra os homens a não ser no que se refere às mulheres. E não me excluo: fui cobarde, idiota, desonesto.
Fui
(espero que não muitas vezes)
rasca.
Volta e meia surge-me na cabeça uma frase de Conrad em que ele comenta que tudo o que a vida nos pode dar é um certo conhecimento dela que chega tarde demais. Resta-me esperar que ainda não seja tarde para mim. A partir de certa altura deixa-se de se jogar às cartas connosco mesmos e de fazer batota com os outros. O problema não está em ti, está em mim, que extraordinária treta. Como os elogios que vêm logo depois: és inteligente, és sensível, és boa, és generosa, oxalá encontres etc., que mulher não ouviu bugigangas destas? Uma amiga contou-me que o marido iniciou o discurso habitual
- Mereces melhor que eu
levou como resposta
- Pois mereço. Rua.
Enfim, mais ou menos isto, e estou a ver a cara dele à banda. Nem uma lágrima para amostra. Rua. A mesma lágrima para amostra. Rua. A mesma amiga para uma amiga sua
- O que faço às cartas de amor que me escreveu?
e a amiga sua
- Manda-lhas. Pode ser que lhe façam falta.
Fazem de certeza: é só copiar mudando o nome. Perguntei à minha amiga
- E depois de ele se ir embora?
- Depois chorei um bocado e passou-me.
Ontem jantámos juntos. Fumámos um cigarro no automóvel dela, fui para casa e comecei a escrever isto. Palavra de honra que na janela uma árvore a sorrir-me. Podem não acreditar mas uma árvore a sorrir-me."

António Lobo Antunes

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Hoje dói, já não temos mãos para apanhar lágrimas de tantos choros. É quando pensamos na impossibilidade de acontecer que acaba enfim por acontecer. Não quero pensar no amanhã. Mas hoje dói.


segunda-feira, 27 de junho de 2016

"O Grande Gatsby", F. Scott Fitzgerald

Sorriu compreensivamente- muito mais que compreensivamente. Era um daqueles sorrisos raros, com uma nota de confiança eterna, com que só nos deparamos umas quatro ou cinco vezes na vida. Encarava- ou parecia encarar- num único instante, o mundo eterno no seu todo, e depois concentrava-se em nós, com irresistível predilecção. Compreendía-nos até onde queríamos ser compreendidos, acreditava em nós como gostaríamos de acreditar em nós próprios, e assegurava-nos que tinha de nós aquela imagem que, nos nossos melhores momentos esperávamos projectar. Precisamente nesse ponto desaparecia- e eu contemplava um jovem vigoroso e elegante, um ou dois anos além dos trinta, cuja rebuscada formalidade no discurso por pouco não se afigurava absurda. Momentos antes de se apresentar, fiquei com a nítida impressão que escolhia as palavras com todo o cuidado.

domingo, 12 de junho de 2016

No dia em que estacionaste o carro na terceira fila a contar da entrada, sexto lugar a contar do fim, milésima vez que me evades o pensamento.
A tarde passou mais depressa que o habitual. Um casal francês tirava fotografias encaixando o rosto da sua metade. Treme daqui, treme dali, expressões semelhantes às fotografias que se tiram para renovar o cartão de cidadão, bilhete de identidade ou lá o que existisse na altura, ou àquelas tiradas aos prisioneiros que lhes antecedem a entrada para o retiro espiritual. Esta seria a estampa a enviar aos filhos
- Olha aqui a mãe com um ar tão sereno. Está de ótima aparência!
Até que o rebordo de um copo de imperial encostado aos lábios e um flash. Quando chegasse à terra, o amigo do peito
- Seu bêbedo! Andaste armado em fino...
- Não que a mulher não deixa.
- Como vai ela? Brilhou em território lusitano?
- Bebeu mais do que eu. Chegou para ofuscar a capital inteira.

C.V. 12/06

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Com vista a racionalizar todo o seu percurso e chegar ao âmago da questão, um deles balbuciava
- A S. Está cada vez mais triste. Onde foi que errámos, explicas-me? Estou um caco, sinto-me impotente e há três dias que não consigo pregar olho. Já te deste conta do abismo profundo em que ela vai cair? Onde estávamos nós? Onde estivemos nós este tempo todo?
De perna cruzada, ele abanava a cabeça. Ela detivera o olhar algures, na máquina do café, talvez, nas reminiscências da rapariga forte que fora a sua S.
- Quem diria
Não espero alcançar nem extrair, de modo algum, o que lhe desgasta os dias penosos e rastejantes. Insisti na procura de vocábulos que não fossem ferir susceptibilidades. Não obstante, queria ser objetiva e que eles entendessem o novelo que é projetado a cada passo dado em direção à sala das confissões, eufemismos à parte.
- O abismo está declarado, meus senhores. Lamento. Calma, paciência, compreensão, dedicação, conforto e amor. É tudo o que ela necessita, somente ainda não se encontra receptiva a tamanho impacto. Subtilezas que ela desconhece. Confiem ou não no que vos passo a dizer, a S. vive livremente aprisionada. Aqui não existe nenhum caos por decifrar.
Irreal, direis vós. Aqui dispo-me de preconceitos. A perfeição é uma utopia e remar até este estado consciente é uma glória.

C.V. "baú das memórias"

sábado, 4 de junho de 2016

Al Berto

Quando não estás
o que nos rodeou põe-se a morrer
a janela que abre para o mar
continua fechada só nos sonhos me ergo
abro-a
deixo a frescura e a força da manhã
escorrem pelos dedos prisioneiros da tristeza
acordo
para a cegante claridade das ondas
um rosto desenvolve-se nítido
além
rasando o sal da imensa ausência
uma voz
quero morrer
com uma overdose de beleza
e num sussurro o corpo apaziguado
perscruta esse coração
esse
solitário caçador

Al Berto, "Quando não estás"

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Que valsa é esta que me embala?

Que valsa é esta que me embala?
Arde-me na pausa que fala
E finda na cadência suspensa
De não haver nada no mundo que nos pertença,
Neste andamento que me seduz e cala.

Que partitura é esta que carrego?
Esconde-se nas horas mortas
E não sossego.
São semifusas que se fecham em copas,
Sortudo sou nesta vida a que me entrego.

C.V. 01/06