sexta-feira, 27 de maio de 2016

Deu duas voltas à chave e abriu a porta. À entrada, Cardoso Miguel "o porteiro" já havia prevenido Amália de que a irmã não poderia andar bem.

- Até tremo quando penso na possibilidade daquela esgroviada sair à rua. Desculpe o termo mas nunca vi coisa semelhante. Parece uma selvagem, meu Deus! Passei a manhã a tentar decifrar o que mais tarde percebi ser o ruído de loiça a quebrar. Vá por mim, antes de ir domar a fera passe pela lojinha da Guilhermina "a taralhoca" e traga uns pratinhos de plástico para desenrascar. Ou passe o garfo e a faca pelo tacho, faça como quiser... Desculpe o riso incontido mas é inevitável, não consigo parar.

Cardoso Miguel "o porteiro" era um predilecto por cognomes e, por isso, todos os residentes do prédio, organizados na sua secretária de serviço por fotografia e por andar e do esquerdo para o direito, tinham o seu. Dizia ser uma coisa chique, carismática.

O acautelamento de Cardoso Miguel "o porteiro" que Amália julgou, por momentos, limitar-se a algo fictício pareceu-lhe mais real do que o que realmente esperava, depois de ter aberto a porta fazendo um ângulo de 45 graus. Digamos que o bastante para se ferir com os estilhaços de vidro que rodopiavam no corredor que seguia em direção à cozinha. Horrorizada, gritou pela irmã tentando sobrepôr a sua voz de cana rachada ao rebuliço sonoro envolvente.

- Onde andas tu? Oh mulher, olha que os funerais estão pela hora da morte e eu não tenho dinheiro para dispender assim do pé para a mão. Faz o favor de me avisar com a devida antecedência. É que o Cardoso Miguel "o porteiro" não é de se fiar e para além de quase me matares do coração ainda me destróis o pouco capital que me resta. Cautela, muita cautela! Maria Felícia, onde raio te meteste?!

Percorreu o andar de baixo sem que nenhum canto pudesse passar despercebido. Quando deu por si, com todo o alvoroço subjacente à situação, a extensa coleção de discos vinil pela qual tanta estima tinha Felícia estava agora desfeita.

- Agora é que a santinha colapsa, pensou.

(...)

- Não tenho nada que me prenda aqui, entendes?

- Como não tens? Eu estou aqui, sou sangue do teu sangue. Esta casa pertence-te. A Ermelinda do café todos os dias por ti pergunta, sente a tua falta. O bairro que com a tua ida se vai tornar mais monótono que a missa de domingo do padre Clemente. Porém, esquece a casa, esquece a Ermelinda, esquece o bairro e esquece o padre, que essa alminha não tem salvação possível. Caramba Felícia, sou tua irmã! A quem vou contar os meus dias, se te fores? Em que ombros irei pousar a cabeça quando me apetecer chorar e mandar tudo à fava? Nos do Cardoso Miguel "o presunçoso" quando ao entrar no prédio lhe fizer um aceno forçado?

(...)

- Levo as setecentas e trinta cartas. É o que me resta, é tudo o que tenho.

- Dizias, ao engano, que nada na vida te iria prender a nada. Olho para ti e tenho pena. Fazes-me lembrar o nosso avô quando foi exilado... Parece que o estou a ouvir

(-Não tenho outro remédio.)

E assim pareces tu.

(...)

Valerá assim tanto a pena pensar que cada acontecimento se dá por um motivo? O que é cada coisa ser o que é?

(...)

As rugas vincadas em torno dos seus olhos tornaram, ao contrário do que por vezes sucede com o passar do tempo, o seu rosto mais apetecível. Jamais Delfim se esquecera da silhueta em que outrora pôde privilegiar de um toque. Convicto como nunca, aproximou-se do muro onde, sentada e consciente, Felícia mirava o Tejo e onde, no seu ombro, a sua mão ganhou forma.

- És mesmo tu?

(...)

De tudo o mais que lhe foi surgindo ao longo da vida, e do pouco que eu soube, teria ficado uma marca que nem a própria conseguiu explicar.

- E eu, que dizia que nunca nada me iria me prender a nada, revejo toda a minha vida resumida naquele dia, naquela mão que acabou então por cruzar a minha.

C.V. 27/05/2016


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